Na ciência, muitas vezes, o estado de bem-estar de um animal é relacionado com os efeitos das ações antrópicas, sendo estas voltadas para o conhecimento das necessidades dos mesmos. Portanto, o novo direcionamento social, possibilitado pelos avanços das últimas décadas, no qual se busca maior respeito nas interações humano/animal, tem por meta a manutenção desse estado de bem-estar, seja nos setores esportivos, de criação e na indústria alimentícia ou mesmo como animais de companhia.
No entanto, a mensuração do bem-estar pode facilmente relacionar-se com a percepção subjetiva que cada indivíduo expressa quando exposto a diferentes situações, logo, faz-se necessária avaliação por formas objetivas e eficientes tal como pelo estudo das variações dos níveis hormonais e parâmetros fisiológicos, bem como de sentimentos inerentes ao animal em questão.
No que concerne ao bem-estar do cavalo atleta, considerando-se que esses animais representam um investimento significativo de tempo e dinheiro e que seu tratamento tem por objetivo o rápido retorno às funções para as quais o animal foi treinado, inúmeros fatores, variando desde a área dos recintos frequentados pelo animal (estábulos e pista de treino), a nutrição e o transporte, até os cuidados físicos e clínicos, devem ser levados em consideração. Como exemplo pode ser citado o fato de que o solo do terreno onde os animais competem nem sempre é o ideal, ademais, os cavalos normalmente competem contra o relógio, o que requer giros e mudanças de direção em alta velocidade em juntas que não são, necessariamente, feitas para suportar tamanha pressão e estresse.
O cuidado veterinário com tais cavalos deve ter abordagem preventiva, não devendo, portanto, ser requisitado apenas em situações de manifestação de doenças ou quando ocorrem traumas. O reconhecimento de problemas de saúde crônicos com progressão lenta, por exemplo, pode prevenir a perda de função no local de acometimento, diminuindo as chances de o animal começar a apresentar, precocemente, baixo rendimento no esporte, estendendo, assim, sua carreira. Um programa de medicina preventiva deve levar em conta também as preocupações com vacinação e parasitismo, atentando-se para a ocorrência de doenças endêmicas (tanto para a região em que o animal é mantido/treinado quanto para as regiões em que ocorrem as competições).
Em se tratando de cavalos atletas outro fator a se considerar é a percepção do público em relação à integridade dos esportes equestres, que deve sempre ser a mais positiva possível. Portanto, os competidores, principalmente, devem estar atentos ao fato de que a confiança dos espectadores em relação a eles e ao esporte deve ser mantida. Considerando isso, um forte posicionamento é tomado para assegurar o bem-estar do cavalo atleta, inclusive em relação ao uso de drogas no momento da competição. Para isso organizações como a FEI (Fédéracion Equestre Internacionale) e a BHA (British Horseracing Authority’s) elaboram regulamentos para controle e fiscalização durante as competições.
Ainda levando em consideração a percepção do público, mas tendo como principal motivação o completo bem-estar do animal, é preciso estar atento à reação do condutor/treinador/dono frente a situações tanto de desobediência quanto de reações agressivas do cavalo em resposta a um determinado comando. Nesses casos, é comum, por exemplo, observar a aplicação de punições físicas. No entanto, mudanças no comportamento podem ocorrer por diversos motivos, dentre eles como resultado de uma resposta fisiológica à dor, visto que os cavalos, ao experimentar estímulos que causam dor ou estresse tendem a fugir ou, quando impossibilitados, lutar. Se, no corpo do animal, existem áreas de alodinia (áreas em que há mudança na percepção da dor onde um estímulo não doloroso é percebido como doloroso) o cavaleiro, ao fazer o manejo, pode inadivertidamente, causar repetidas sensações de dor no animal, possivelmente influenciando em seu comportamento. Isso pode ser observado, por exemplo, durante a performance, nos momentos em que o animal escoiceia o ar em resposta à pressão das pernas do cavaleiro em seu flanco, ou quando o cavalo recusa se movimentar. Portanto, o conhecimento da fisiologia da dor pode ajudar no aprimoramento do bem-estar do animal e no sucesso do tratamento, bem como no melhoramento do desempenho do cavalo, resultando em um ambiente mais seguro, tanto para o animal quanto para as pessoas envolvidas.
Deve-se, ainda, levar em consideração que tanto a personalidade quanto o temperamento dos equinos são influenciados por diversos fatores, dentre os quais os de maior relevância são os fatores genéticos (resultantes da linhagem e da raça do animal, por exemplo) e as experiências vividas pelo cavalo ao longo de sua vida.
Outro fator de grande relevância quando o assunto é o bem-estar de cavalos é o estresse psicológico a que esses animais são submetidos. Esse estresse pode ser detectado pela observação do desenvolvimento de estereotipias (que também podem estar relacionadas, por exemplo, à nutrição – a manutenção dos cavalos em estábulos limita o tempo destinado ao pastejo, o que diminui o tempo diário de alimentação, aumentando o tempo ocioso, desencadeando, assim, aumento na frequência de estereotipias). A realização de estereotipais pode reduzir os sinais fisiológicos do estresse (alívio do estresse crônico), atuando como forma de adaptação desenvolvida pelo animal frente ao estresse gerado pelo ambiente. Portanto, métodos físicos e químicos que impedem sua realização não são recomendados.
Em estudo realizado por Lilian A. Gontijo e colegas no Jockey Club do Paraná em que o desenvolvimento de estereotipias foi relacionado com o aumento das chances de distúrbios no metabolismo do cortisol (alteração do ritmo circadiano circulatório), quatro animais que apresentavam estereotipias portavam mecanismos que restringiam a expressão dessas anomalias. Desses animais, em todos foi detectado alteração do RCC, corroborando a afirmação de que a restrição da realização das estereotipias aumenta os níveis de cortisol circulatório impedindo a diminuição do estresse do indivíduo, fato que não contribui para a manutenção do bem-estar.
Quando relacionadas à nutrição foi observado que dietas de equinos confinados em que estão presentes altas proporções de alimentos concentrados há aumento da incidência dessas anomalias comportamentais, indicando que a carência de alimentos volumosos pode ser um fator causal no desenvolvimento de atipias. Ademais, baixas concentrações de alimentos volumosos na dieta também estão relacionadas com desenvolvimento de ulcerações gástricas, cólicas e laminite.
Em relação à escolha do tratamento deve-se levar em conta que, visando a manutenção do bem-estar, nenhuma dor desnecessária, ou seja, aquela que não resultará em nenhum benefício comprovado para o tratamento, deve ser infligida ao animal. No Reino Unido, por exemplo, o Animal Welfare Act de 2006 proíbe que esse tipo de prática seja realizada.
Regras e Regulamentos
Fundada em 1921 pelas federações equestres nacionais da Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Japão, Noruega, Suécia e Estados Unidos da América, a FEI (Fédéracion Equestre Internacionale), órgão mundial que supervisiona os esportes equestres, possui, atualmente, um total de 103 federações nacionais afiliadas, entre elas a brasileira. As federações nacionais são responsáveis pela administração dos esportes a nível nacional, enquanto a FEI administra assuntos a nível internacional. Os comitês, além de serem responsáveis pela formulação de regras e regulamentos, zelam pelos interesses das várias disciplinas em que a organização atua.
Os cavalos que participam de eventos supervisionados por esse órgão estão sujeitos a testes antidoping e de medicamentos controlados para detecção de substâncias proibidas. O regulamento da FEI responsável por esse tópico determina que “qualquer cavalo em que, a partir dos testes de medicação, seja detectada presença de qualquer das substâncias proibidas em seus tecidos, fluidos corporais ou excreta em um evento é automaticamente desqualificado de qualquer competição nesse evento”. Durante um evento, os cavalos escolhidos para realização dos testes podem ser selecionados de maneira aleatória, de acordo com seu resultado final (se o animal vence ou se alcança alta colocação) ou ainda por escolha pré-definida (no caso de haver suspeita, por exemplo). Essa política é aplicada principalmente com vistas à proteção da integridade do esporte e do bem-estar dos cavalos.
REFERÊNCIAS
GONTIJO, Lilian A. et al. Bem-estar em equinos do Jockey Club do Paraná: indicadores clínicos, etológicos e ritmo circadiano do cortisol. Pesqui. vet. bras, v. 38, n. 9, p. 1720-1725, 2018.
GLEERUP, Karina Bech. Assessing pain in horses. In Practice, v. 40, n. 10, p. 457-463, 2018.
TERMINE, Caterina. Use of medication in competition horses. In Practice, v. 38, n. 7, p. 341-345, 2016.
CAMPBELL, Madeleine LH. The role of veterinarians in equestrian sport: A comparative review of ethical issues surrounding human and equine sports medicine. The Veterinary Journal, v. 197, n. 3, p. 535-540, 2013.
DITTRICH, João Ricardo et al. Comportamento ingestivo de equinos e a relação com o aproveitamento das forragens e bem-estar dos animais. Revista Brasileira de Zootecnia, v. 39, p. 130-137, 2010.
ATOCK, M. A.; WILLIAMS, R. B. Welfare of competition horses. Revue Scientifique et Technique de l’Office International des Epizooties, v. 13, n. 1, p. 217-232, 1994.
ELLIS, Robert. Welfare problems of the horse. In Practice, v. 12, n. 6, p. 234-238, 1990.
Colaboração: José Joffre Martins Bayeux, médico veterinário especializado em Medicina Esportiva; Júlia Raquel Pereira Lima, graduanda em Medicina Veterinária; Bruna Bizzarro Albuquerque, graduanda em Medicina Veterinária; e Bruno Thevenet Souto de Araújo, graduando em Medicina Veterinária
ilustração: pixabay.com